Mulher, negra e
escravizada: Esperança Garcia, a primeira advogada do Piauí
Esperança Garcia foi uma mulher escravizada que
viveu no Piauí, acredita-se que ela nasceu em 1751, ela pertencia aos padres
jesuítas, que ao serem expulsos do Brasil pelo Marquês de Pombal, foi entregue
ao governo do Estado e levada à Fazenda de Algodões, na região de Oeiras,
aproximadamente a 300km de Teresina, onde hoje fica localizado o município de
Nazaré do Piauí. Ganhou o título de primeira advogada do Piauí concedido pela
OAB-PI, devido a coragem e obstinação, denunciando os excessos e maus tratos
cometidos pelo feitor da fazenda. A carta escrita pela escrava endereçada ao
governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, é considerada uma das
cartas mais antigas do Brasil e desafiadora, escrita e assinada pela mão de uma
escravizada no final do Século XVIII.
Nome Completo: Esperança Garcia
Descrição: A primeira advogada
do Piauí
Data de Nascimento: 1751
Local de Nascimento: onde hoje
fica o município de Nazaré do Piauí
Data de falecimento: (não se
sabe ao certo)
Local de falecimento: (não se
sabe ao certo)
Carta
“Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de
Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Capam. lá foi adeministrar, q.
me tirou da fazenda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser
cozinheira de sua caza, onde nella passo mto mal. A primeira hé q. ha grandes trovoadas
de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella
boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã
vez do sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. esCapei. A segunda estou
eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e
duas mais por batizar. Pello q. Peço a V.Sª. pello amor de Ds. e do seu
Valimto. ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p.
a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha
q.
De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”
Carta com léxico atualizado
“Eu sou uma escrava de V.Sª. administração de
Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi
administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, onde vivia com meu marido,
para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há
grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez
extrair sangue pela boca; em mim não posso explicar que sou um colchão de
pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de
Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três
anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.Sª. pelo amor
de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que
mande para a fazenda onde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar
minha filha.
De V.Sª. sua escrava, Esperança Garcia”
As condições dos escravizados
No período cuja carta escrita por Esperança
Garcia foi datada, existiam poucas mulheres que sabiam escrever, além disso os
escravos eram proibidos de serem alfabetizados. No século XVIII existiam 18
escravizados trabalhando na fazenda de Algodões, desses o mais velho tinha 73
anos e o mais novo 1 ano, sete possuíam mais de 30 anos e seis menos de 8 anos.
Era lá que ficava a administração central da inspeção de Nazaré. Os
escravizados moravam em senzalas, que eram casas de palha e ficavam apartadas
das casas dos inspetores. Essas moradias eram mais como ranchos, nem sempre
finalizadas, tinham o piso de “chão batido” que no período chuvoso virava um
lamaçal. Os escravizados dormiam em redes que eram fabricadas pelas
trabalhadoras, os seus cobertores eram feitos com o mesmo tecido fornecido para
os “suadouros” dos cavalos. As condições insalubres nas fazendas eram absurdas,
tanto que era comum crianças, mulheres e homens serem acometidos com vários
tipos de enfermidades, eles quase não possuíam vestes, andavam quase nus.
Alimentavam-se, basicamente, de carne de gado seca e farinha.
Os desafios da época
A coragem de Esperança Garcia é lembrada por ter
desafiado as leis da época, além de todas as dificuldades vividas, as mulheres
sofriam constantemente abuso sexual, tiradas muitas vezes dos próprios maridos,
punidas quando se recusavam a cooperar com os maus-tratos. Enquanto os índios
eram aos poucos dizimados, acontecia um processo de mestiçagem forçada ou
espontânea, o resultado dessa miscigenação foi o aumento desses descendentes
que passaram a ser a maioria da população. E, segundo Santos e Kruel, existiam
dois grupos: as pessoas livres (sesmeiros, sitiantes, vaqueiros e posseiros) e
as escravizadas (índios, negros e mestiços). Para aumentar diminuir o poder dos
grandes proprietários e aumentar o poder da Coroa foi constituído a freguesia
Nossa Senhora da Vitória do Brejo da Mocha, depois passou a condição de
cidade, posteriormente a capitania ganhou o nome de São José do Piauí tendo
como capital Oeiras. Depois da dispersão dos índios e a ocupação dos currais,
Marquês de Pombal, em 1760, expulsa os jesuítas, e os bens dos missionários são
transferidos para a Coroa. Nesse período tinha um escravizado para cada três
homens livres e os cativos eram basicamente constituído de jovens, considerados
na faixa etária produtiva. No Piauí os escravizados tentavam resistir contra a
sua condição, aspirando a liberdade, não é por menos que Esperança Garcia
tentou denunciar os abusos sofridos.
Uma carta incomum
As informações sobre o Piauí Colonial são
escassas, mas acredita-se que a carta original, escrita pelas mãos de Esperança
Garcia, esteja em Portugal, o pesquisador Luiz Mott encontrou a cópia da carta
no arquivo Púbico do Piauí. O documento foi escrito no dia 06 de setembro de
1770, endereçado ao governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro,
Esperança Garcia tinha 16 anos de idade. O conteúdo da carta trazia relatos a
respeito das condições vivenciadas nos trabalhos e os maus-tratos praticados
pelo inspetor Antônio Vieira Couto, após ser tirada da sua fazenda se origem.
Ela descreveu as tormentas vividas, como seu filho e ela eram torturados, que
era amarrada como um animal, que já caiu de um penhasco enquanto estava
amarrada e quase morreu nessa ocasião, além de serem proibidos de batizar os
seus filhos e de se confessarem. Esperança Garcia não exigia a liberdade, mas
não ser violentada, além de poder praticar a sua religião. E as características
do pedido que apontava para a violação do direito a religiosidade foi considerado
não apenas uma carta, mas uma petição, que foi usada para punir os seus
agressores.
Resistência e fuga
Depois da denúncia, Esperança Garcia fugiu para a
mata próxima à Algodões, com a ajuda de alguns parceiros, ficou afastada
durante um período. Somente oito anos depois da fuga que o nome de Esperança
aparece na relação de trabalhadores de Algodões. Mesmo com poucas informações,
sabe-se que aos 16 anos a advogada pariu o seu primeiro filho, supõe-se que ela
tenha tido outros filhos, acredita-se que ela tenha aprendido a escrever com os
jesuítas quando era criança. Esperança Garcia foi uma mulher não só consciente,
mas que desafiou a estrutura na qual estava inserida usando as ferramentas que
tinha disponíveis para tentar se defender e defender as suas companheiras. E
para homenagear a coragem, a força e a esperança dessa mulher, a estilista
Patrícia Costa decidiu retratar a história de Esperança Garcia na passarela. A
estilista comenta que a alma da Esperança não morrerá e que ela foi uma
inspiração para a vida toda. “Pude compreender Esperança Garcia no âmbito
da esperança e coragem de uma escrava que, sabemos pouco sobre como, aprendeu a
ler e a escrever e que só queria voltar para casa e ter sua família de volta,
batizar sua filha e não sofrer mais violência nenhuma”, diz Patrícia Costa.
Memória viva
Esperança Garcia é o símbolo da luta e
resistência, a história da mulher escravizada que desafiou a sua época inspira
gerações. Andreia Marreiro Barbosa, professora substituta no Curso de Direito
na Universidade Estadual do Piauí e vice-presidenta da Comissão da Verdade da
Escravidão Negra e da Comissão de Direitos Difusos e Coletivos da OAB/PI, foi a
idealizadora do pedido de reconhecimento de Esperança Garcia como advogada e
ela comenta: “Pra nós é muito sintomático que o olhar de Esperança Garcia
seja um olhar que nos denota tristeza por todas as perversidades que o racismo,
o machismo, provoca nessa sociedade que a gente vive, mas ao mesmo tempo que
nos inspira esperança para continuar lutando contra essas estruturas, em busca
de uma dignidade, em busca de uma vida mais feliz, em busca de um bem viver. ”
O requerimento de concessão do título de primeira mulher advogada do Piauí foi
feito pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB-PI, presidida por
Maria Sueli Rodrigues de Sousa. Esperança Garcia além de referência para o povo
foi a inspiração para o novo nome do antigo Memorial Zumbi dos Palmares, agora
Memorial Esperança Garcia, que tem a sua imagem e o texto original da sua carta
grafitados na entrada do local.
A esperança de um futuro
melhor
Não existe nada mais emblemático que um nome que
carrega a força como o de Esperança Garcia, que tem uma história marcada por
violências, mas também de resistência. A sua história durante muito tempo ficou
escondida e esquecida, a carência de informações só confirma o quanto a
história também é um instrumento de poder e pode ser contada pelo olhar de quem
detém esse poder, ignorar o nosso passado é fortalecer esses discursos que
silenciaram e massacraram muitos sujeitos. A professora Andreia Marreiro
Barbosa conta que Esperança Garcia representa esses sujeitos que foram
ocultados da nossa memória, e ela relembra o quanto é importante conhecermos a
nossa história e refletirmos sobre quem somos, construindo uma história a
partir do que desejamos ser, com autonomia e respeito às diversidades.
Esperança Garcia foi audaciosa, isso não resta dúvida, ela exigiu direitos em
um período que os direitos eram negados aos escravizados, sua história inspira
até hoje para que possamos construir uma sociedade livre das desigualdades, do
racismo e das diversas violências. Esperança para superar as máculas do
passado, sem ignorar os nossos erros, mas aprendendo a não repetir, não
reproduzir ideias perigosas.
A antiga Unidade Escolar Domingos Jorge Velho, hoje Memória
Esperança Garcia.