'Descendentes precisam
saber que história da África é tão bonita quanto a da Grécia'
Principal
africanólogo brasileiro, diplomata Alberto da Costa e Silva diz que negro não
aparece na nossa história 'como realmente foi, um criador, um povoador do
Brasil'.
Fernanda da Escóssia
Do Rio de Janeiro para a BBC Brasil
Segundo o acadêmico Alberto da Costa e Silva, Brasil precisa mudar olhar em estudo da África (Foto: Guilherme Gonçalves/ABL)
Quando começou a se interessar pela história da África,
o poeta, diplomata e historiador Alberto da Costa e Silva ouviu: "Por que
você, um diplomata, um homem tão letrado, não vai estudar a Grécia?"
Justamente porque todo mundo estudava a Grécia, explica,
ele resolveu estudar a África. Hoje, é o principal africanólogo brasileiro,
autor de clássicos como A Enxada e a Lança: a África antes dos Portugueses e A
Manilha e o Libambo: a África e a Escravidão, de 1500 a 1700. E, aos 84 anos,
prepara um novo livro para completar sua trilogia sobre história africana.
Formado em 1957 pelo Instituto Rio Branco, Costa e Silva
serviu em vários países e foi embaixador na Nigéria.
É membro da Academia Brasileira de Letras, autor e
organizador de mais de 30 livros. Por sua obra, recebeu em 2014 o Prêmio
Camões, o mais prestigiado da língua portuguesa.
Filho do poeta piauiense Antônio Francisco da Costa e
Silva, nasceu em São Paulo e viveu no Ceará até aos 12 anos, quando mudou-se
para o Rio de Janeiro. Cresceu entre livros e costuma dizer que, como no verso
do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), seu berço "ao pé da
biblioteca se estendia".
Foi entre livros, quadros e esculturas, no apartamento
em que guarda lembranças de vários lugares do Brasil e do mundo, que ele
recebeu a BBC Brasil às vésperas do Dia da Consciência Negra para falar da
história do continente pelo qual se apaixonou.
BBC Brasil: Como o Brasil aprendeu a história da África?
Alberto da Costa e Silva: A história da África durante muito tempo foi uma espécie de capítulo de antropologia e etnografia do continente africano. Eram livros que árabes e europeus escreveram sobre suas viagens. Data do fim da Segunda Guerra Mundial a consolidação a história da África como disciplina à parte, semelhante à história da Idade Média europeia, ou à história da China.
Alberto da Costa e Silva: A história da África durante muito tempo foi uma espécie de capítulo de antropologia e etnografia do continente africano. Eram livros que árabes e europeus escreveram sobre suas viagens. Data do fim da Segunda Guerra Mundial a consolidação a história da África como disciplina à parte, semelhante à história da Idade Média europeia, ou à história da China.
Entre 1945 e 1960 seu estudo começa a ganhar grandes
voos, tanto na África quanto na Europa, sobretudo Inglaterra e França.
Curiosamente o Brasil esteve ausente disso. Os historiadores brasileiros sempre
viam a história das relações Brasil-África com a África figurando como
fornecedora de mão de obra escrava para o Brasil, como se o africano que era
trazido à força nascesse num navio negreiro.
Era como se o negro surgisse no Brasil, como se fosse
carente de história. Nenhum povo é carente de história. E a história da África
é uma história extremamente rica e que teve grande importância na história do
Brasil, da mesma maneira que a história europeia.
De maneira geral, quando se estuda a história do Brasil,
o negro aparece como mão de obra cativa, com certas exceções de grandes
figuras, mulatos ou negros que pontuam a nossa história. O negro não aparece
como o que ele realmente foi, um criador, um povoador do Brasil, um introdutor
de técnicas importantes de produção agrícola e de mineração do ouro.
BBC Brasil: O senhor poderia citar alguns exemplos?
Costa e Silva: Os primeiros fornos de mineração de ferro
em Minas Gerais eram africanos. Fizemos uma história de escravidão que foi
violentíssima, atroz, das mais violentas das Américas, uma grande ignomínia e
motivo de remorso. Começamos agora a ter a noção do que devemos ao escravo como
criador e civilizador do Brasil.
Quando o ouro é descoberto em Minas Gerais, o governador
de Minas escreve uma carta pedindo que mandassem negros da Costa da Mina, na
África, porque "esses negros têm muita sorte, descobrem ouro com
facilidade". Os negros da Costa da Mina não tinham propriamente sorte:
eles sabiam, tinham a tradição milenar de exploração de ouro, tanto do ouro de
bateia dos rios quanto da escavação de minas e corredores subterrâneos. Boa
parte da ourivesaria brasileira tem raízes africanas.
Temos de estudar o continente africano não como um
capítulo à parte, um gueto. A história da África está incorporada à história do
mundo, porque ela foi parte e é parte da história do mundo. Que a história do
negro no Brasil não seja isolada, como se o negro tivesse sido um marginal. O
negro foi essencial na formação do Brasil.
BBC Brasil: Qual a importância de um personagem como
Zumbi?
Costa e Silva: Havia um suplemento juvenil do jornal A
Noite, sobre grandes nomes da história, e eu me lembro perfeitamente de um
caderno sobre Zumbi. Zumbi está aliado de tal maneira à ideia de liberdade que
é difícil escrever sobre ele sem ser apaixonado.
Zumbi não é um nome, é um título da etnia ambundo,
significa rei, chefe. Palmares era como um Estado africano recriado no Brasil.
Na África era muito comum isso. Em torno de um núcleo de poder forte se
aglomeravam vários povos e formavam um novo povo. Isso é uma hipótese.
BBC Brasil: O senhor vê um aumento do interesse dos
brasileiros pela questão negra?
Costa e Silva: Tenho a impressão de que todos temos
dentro de cada um de nós um africano. Podemos não ter consciência disso, mas é
permanente. Há naturalmente hoje em dia uma percepção mais nítida do que é a
África, a escola começa a dar uma visão mais clara.
Mas ainda apresenta visões distorcidas. Uma vez uma
professora veio me dizer que era absurdo que apresentássemos Cleópatra como uma
moça branca, quando ela era negra. É um equívoco isso. Cleópatra não era negra
nem mulata. Era grega. Os Ptolomeus, uma dinastia grega, governavam o Egito e
não se misturavam.
BBC Brasil: Na África também havia escravos, não?
Costa e Silva: Escravidão houve em todas as culturas no
mundo. Todos nós somos descendentes de escravos. Houve escravidão em toda a
Europa, na Indonésia, entre os índios americanos, na Inglaterra. Na África
havia todos os tipos de escravidão, e até hoje em certas regiões africanas os
descendentes de escravos são discriminados. Quase toda a África teve
escravidão.
A escravidão transatlântica, da África para as Américas,
a nossa, tem uma diferença básica: pela primeira vez era uma escravidão racial.
Era um especial aspecto da perversidade dela. No início não, mas a partir de
certo momento, passa a ser exclusivamente negra. Foi o maior deslocamento
forçado de gente de uma área para outra que a história já conheceu, e o mais
feroz.
O Brasil foi o último país das Américas e do Ocidente a
abolir a escravidão. O último do mundo foi a Mauritânia (na África), em 1981.
BBC Brasil: Como analisa o racismo hoje no Brasil?
Costa e Silva: Existe racismo, e muitíssimo. No nosso
racismo, não temos um partido racista, mas temos repetidas manifestações de
racismo no seio da sociedade. É dificílimo, para um negro, ascender
socialmente. A discriminação se exerce de forma muitas vezes dissimulada, mas
que os marca muito. Mas está mudando. Sinto mudanças.
É importante que os descendentes de africanos saibam que
eles têm uma história tão bonita quanto a história da Grécia. Que eles não eram
bárbaros, que não são descendentes de escravos. São descendentes de africanos
que foram escravizados.
Para mim o importante não é que haja cota na
universidade. Acho que tem de haver cota em tudo. Se você vai se candidatar a
um cargo de atendente de hotel de primeira classe, se você for negro, você tem
dificuldade. O preconceito é discriminatório. Ele não impede você de usar o
mesmo banheiro, o mesmo bebedouro, mas dificulta o acesso (do negro) às camadas
das classes média e alta.
Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/11/descendentes-precisam-saber-que-historia-da-africa-e-tao-bonita-quanto-a-da-grecia.html
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