Navios portugueses e brasileiros fizeram
mais de 9 mil viagens com escravos da África para o Brasil
Amanda Rossi - Da BBC News Brasil em São
Paulo 07/08/201817h57
4,8 milhões de africanos foram transportados para o Brasil e
vendidos como escravos, ao longo de mais de três séculos
O Brasil ainda não estava no mapa
do mundo quando, em 1482, uma dúzia de embarcações portuguesas aportou no oeste
da África com uma missão dada pelo rei dom João 2º: construir uma fortaleza
militar para defender os interesses econômicos de Portugal na região. Os porões
dos navios estavam carregados de material de construção e havia na tripulação
dezenas de pedreiros e carpinteiros. Era uma empreitada pioneira, já que
nenhuma outra nação europeia havia feito nada semelhante.
Meses depois, surgia o Castelo de
São Jorge da Mina, na então Costa do Ouro, hoje Gana. Primeiro, foi um local de
comércio de ouro. Depois, de escravos - mais de 30 mil foram levados dali para
o Brasil, em navios portugueses. O castelo existe até hoje e foi declarado
Patrimônio da Humanidade, um monumento "aos horrores do tráfico de
escravos". É um dos resquícios mais antigos da presença dos portugueses na
África e de sua participação na escravidão.
A construção do castelo foi só o
começo da empreitada de Portugal na África. Em seguida, os portugueses se
instalaram em diversos pontos do continente e fizeram do tráfico de escravos a
sua principal e mais lucrativa atividade econômica na região. Ao longo de mais
de três séculos, navios portugueses ou brasileiros embarcaram escravos em quase
90 portos africanos, fazendo mais de 11,4 mil viagens negreiras. Dessas, 9,2
mil tiveram como destino o Brasil. Especial 130 anos da abolição: A luta
esquecida dos negros pelo fim da escravidão no Brasil.
Os dados são da The
Trans-Atlantic Slave Trade Database(http://www.slavevoyages.org/), um esforço
internacional de catalogação de dados sobre o tráfico de escravos - que inclui,
entre outros, a Universidade de Harvard. O levantamento foi possível porque os
escravos eram uma mercadoria, registrada na entrada e saída dos portos, sobre a
qual incidia cobrança de impostos.
Polêmica sobre a participação de Portugal na escravidão africana
A história de Portugal na África
e seu papel na escravidão entrou na pauta política brasileira depois que o
candidato à Presidência Jair Bolsonaro declarou que "o português nem
pisava na África" e responsabilizou os próprios africanos pela escravidão,
em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. A afirmação ocorreu após
uma pergunta sobre cotas raciais.
"A ideia de que os
portugueses nunca estiveram na África é completamente falsa. Na verdade, foram
os portugueses que abriram a África para o mundo Atlântico (Europa e
América)", afirma Christopher DeCorse, professor de antropologia da
Universidade de Syracuse, nos Estados Unidos, e autor de livros sobre o Castelo
de São Jorge da Mina e o tráfico de escravos.
"Os portugueses são os
primeiros a iniciar o comércio de escravos no Atlântico. Durante algumas
décadas, são praticamente só eles que fazem esse tipo de comércio. Não é
propriamente um pioneirismo honroso, mas é um fato", completa o
historiador Arlindo Manuel Caldeira, pesquisador da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e autor do livro Escravos e
Traficantes no Império Português.
Por outro lado, é fato que
algumas sociedades africanas tiveram participação fundamental no tráfico de
escravos, capturando outros povos e os vendendo conforme a demanda dos
europeus. No entanto, historiadores ressaltam que foi a pressão dos europeus
por escravos que exacerbou o tráfico interno africano.
"Apesar de uma elite
africana ter se beneficiado diretamente do comércio de escravos, não há dúvidas
de que, sem a pressão dos europeus, a escravidão na África teria uma dimensão
imensamente menor. Foi o estímulo europeu que levou a um crescimento
exponencial da escravidão", contrapõe Arlindo.
Além disso, independentemente de
quem foram os culpados pela escravidão, não há dúvidas de que os 4,9 milhões de
africanos trazidos como escravos para o Brasil são as vítimas. Nenhum outro
lugar do mundo recebeu tantos escravos. Em comparação, nos Estados Unidos,
foram 389 mil.
Escravidão existia na África antes do tráfico europeu
A escravidão existia na África
antes mesmo da chegada dos europeus. Os perdedores de um conflito, por exemplo,
poderiam se tornar escravos dos vencedores. No entanto, a dimensão dessa prática
era limitada.
Quando os portugueses chegaram à
África, seu interesse inicial não era em escravos. Logo depois, no entanto,
isso mudou.
"As elites africanas
facilitaram o comércio de escravos. Elas ficaram muito dependentes da
importação de mercadorias europeias - como armas, artigos de consumo e de luxo.
O que tinham para dar em troca, e que os europeus aceitavam, era sobretudo
mercadoria humana. Isso foi desastroso para a África, porque era uma troca
altamente desigual - produtos manufaturados por pessoas", afirma Arlindo
Manuel Caldeira.
Assim, por exemplo, ao
comercializar na costa sudoeste da África no início do século 16, os
portugueses receberam escravos como pagamento. Depois, trocaram esses escravos
por ouro na região do Castelo de São Jorge da Mina. Em seguida, os portugueses
foram pioneiros em adquirir escravos para vendê-los fora da África. Uma das
primeiras viagens negreiras registradas, por exemplo, ocorreu em 1514, quando
um navio português partiu do Rio Congo com 400 escravos rumo a Lisboa.
Posteriormente, Portugal passou a abastecer com escravos seus territórios de
São Tomé e Cabo Verde.
Até 1650, dois de cada três
navios que comercializavam escravos no mundo eram portugueses.
Portugal e Inglaterra controlaram o tráfico de escravos
O número de viagens negreiras
para o Brasil foi crescendo à medida que a exploração econômica baseada no
trabalho escravo avançava - o açúcar, no Nordeste, o ouro, em Minas Gerais, e o
café, em São Paulo.
O auge ocorreu de 1750 a 1850
(ano em que o tráfico foi finalmente proibido): nesse período, aportaram no
Brasil 7 mil navios portugueses ou brasileiros trazendo escravos da África - a
partir da independência, em 1822, os brasileiros assumiram protagonismo no
tráfico de escravos.
O comércio era altamente lucrativo.
Traficantes portugueses fizeram fortunas e, em alguns casos, até ganharam
títulos de nobreza em Portugal.
É o caso do Conde Joaquim
Ferreira dos Santos. No começo do século 19, ele montou postos de compra de
escravos em Angola, que controlava a partir do Rio de Janeiro. Ele próprio foi
à África algumas vezes para carregar seus navios de escravos. Calcula-se que
tenha vendido 10 mil africanos no Brasil.
Quando o Brasil se tornou
independente, Ferreira dos Santos pediu nacionalidade brasileira e continuou
traficando escravos.
À época de sua morte, sua fortuna
foi avaliada em cerca de 1500 contos, equivalente a muitas dezenas de milhões
de euros atuais, segundo Arlindo Manuel Caldeira, que pesquisou a história dos
traficantes portugueses. Parte da riqueza foi usada para criar obras de
caridade, existentes até hoje em Portugal, como a rede de escolas públicas
Conde de Ferreira e o hospital psiquiátrico Conde de Ferreira.
A força negreira de Portugal só
foi abalada pela Inglaterra. Apesar de terem entrado no negócio meio século
depois dos portugueses, os ingleses fizeram o maior número de viagens negreiras
do mundo, 600 a mais que Portugal. O destino era, em primeiro lugar, as
colônias inglesas no Caribe e, em seguida, os Estados Unidos.
Já a partir do século 19, a
Inglaterra mudou de lado e passou a defender (e exigir) o fim do tráfico de
escravos no mundo. Foi por pressão inglesa que o Brasil aboliu o tráfico de
escravos.
Além de Portugal e Inglaterra,
outros países também traficaram escravos da África para as Américas, como
Holanda e França. Nenhum navio negreiro tinha a bandeira de uma nação africana.
Demanda de escravos para as Américas elevou conflitos na África
Além do Brasil, outras colônias
americanas foram se tornando economias escravistas e demandando um número cada
vez maior de escravos africanos. Do ponto de vista econômico, quando a demanda
cresce, a produção também aumenta. É a lei da oferta e da procura. Foi o que
ocorreu na África.
"As elites africanas
tentaram ter sempre o maior número possível de escravizados para trocar por
mercadorias europeias. São desenvolvidas diversas formas de obtenção de
escravizados, como medidas fiscais (cobrança de impostos) e de caráter judicial
(julgamentos que condenavam o acusado à
escravidão). Mas a principal vai ser por força, pela guerra", explica
Arlindo Manuel Caldeira.
Assim, "o comércio negreiro
motivou uma série de guerras étnicas e conflitos que tinham como objetivo obter
escravos, para que pudessem ser vendidos para comerciantes europeus", diz
Christopher DeCorse.
Algumas mercadorias vendidas
pelos europeus, como cavalos e armas, aumentaram o poder de conquista de
algumas sociedades africanas - e reduziram a capacidade de resistência de
outras. As maiores vítimas foram comunidades camponesas, capturadas por
sociedades vizinhas com maior poder bélico.
"Então a culpa é dos
africanos? Não, nós devemos apontar o dedo diretamente para os europeus. Foram
os europeus que moveram o mercado de escravos. Foram os europeus que foram para
a costa africana e disseram para seus líderes: 'nos deem escravos'", diz
Christopher DeCorse.
Fonte: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2018/08/07/navios-portugueses-e-brasileiros-fizeram-mais-de-9-mil-viagens-com-escravos-da-africa-para-o-brasil.htm
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